Faltavam 40 minutos para a meia noite e o casal de idosos já estava à caminho da casa do terceiro filho. Ainda tinham que comparecer na casa de mais um. Na verdade dois, mas o primogênito não convidou os pais para o réveillon .
O rádio no carro contava como ia a festa na Avenida Paulista e os velhinhos começaram a rir juntos. Lembraram-se da vez que toda a família, resolveu encarar a aventura. E que aventura!
O caçula se perdeu na multidão. As gêmeas brigavam pelo direito de estourar a champagne, enquanto a tia passava mal por causa do calor e o segundo filho paquerava umas caipiras que encontrou no meio daquele povo todo. O primogênito nem foi na festa . No auge da adolescência, terminou a discussão com o clássico “Ninguém me entende !” e passou o ano novo em casa.
Tudo dentro do normal. Com tanto trabalho era difícil passar tempo junto. A família se habituou ao esquema cada um por si e o pai por todos. Certamente se referindo ao dinheiro que o pai adquirira trabalhando... Até de mais na opinião das crianças.
Mais tarde descobriram que o caçula estava vendendo doces e ainda caçava latinhas de refrigerante para trocar no ferro velho. “O tio Alfredo disse que isso é capitalismo, o que esse menino faz. Num brinca de outra coisa senão mercadinho, cambista. Só brinca de passa anel se o anel for de ouro.” Comentou o pai orgulhoso e um pouco preocupado.
Naquele dia teve de tudo, menos champagne. As meninas brigaram, brigaram e no fim derrubaram a champagne na cabeça de um bêbado que tentou abordá-las.
A paquera do menino terminou com um bom puxão de orelha, daqueles que ardem até na alma. – Menino sem vergonha. Nem saiu direito das fralda já tá achando que é gente? Rapa pra casa moleque safado.
Depois de recuperada a tia sentiu falta de gente da família. - Onde está o Henrique?- perguntou surpresa. – Ele gostava tanto desta bagunça de festa quando pequeno...-. A mãe respondeu sem se incomodar muito– É né, tia Rute..?! Ele anda sumido, mas agente nem se preocupa. Nunca precisou de ninguém pra nada... - feito o comentário, a mulher descarregou a consciência o voltou a apreciar a festa.
- Tá tudo diferente mas tá tudo igual né, Carlos?!- disse a senhora saindo das memórias e filosofando um pouco, coisa que todo mundo faz depois de cinqüenta anos, cinco filhos e quatro ceias de réveillon...
Por mais atordoada que a noite tivesse sido, a velhinha começou a refletir profundamente no fim que levou a sua prole. Estava acostumada à personalidade deles, mas ao destino que tomaram era difícil de se acostumar.
O caçula se perdeu na multidão dos investimentos e do dinheiro. Apostou,trocou,vendeu, perdeu. Perdeu tudo o que tinha. Entrou em depressão. Por essa o pai não esperava. Agora devia se preocupar de verdade.
As gêmeas pararam de brigar. E pararam de ser gêmeas também. Decidiram ser diferentes. Cansaram de dividir roupa, festa de aniversário, brinquedo, atenção, elogio, carinho, méritos. Uma delas comemora o aniversário três dias depois do nascimento. O negócio ficou trágico quando cansaram de dividir o mesmo recinto.
O segundo filho resolveu usar a lábia em outros empreendimentos. Seguiu caminho diferente que o do irmão mais novo. Bem sucedido, casado, pai de uma menina. Aliás, muito bem sucedido, mal casado e pai da.... Como é mesmo o nome dela? , indagou o pai na durante a ceia em particular – Deixa isso quieto, pai! Minha relação com ela é só bancária – bradou o infeliz homem de negócios.
-O quê tínhamos na cabeça de adotar quatro crianças, Carlos? E hoje elas nem se falam mais.No final nosso maior orgulho é Henrique, que não é primogênito na verdade.
As memórias agora foram outras. Primeiro o menino pedindo um irmãozinho, depois obrigando o pai a levar a família para a avenida paulista mesmo que não houvesse lugar para ele no carro. Na época o pai não entendia o que ele queria dizer com “eu já tive meus caprichos...”. Lembrou-se por fim de todas as vezes que o menino substituiu o pai enquanto esse trabalhava pelo sustento.
Já passara da meia noite e no rádio, “Use Filtro Solar” parecia decifrar o primogênito: Dedique-se a conhecer seus pais. É impossível prever quando eles terão ido embora, de vez. Seja legal com seus irmãos. Eles são a melhor ponte com o seu passado e provavelmente quem vai sempre te apoiar no futuro...
Texto por: Carolina Nogueira
Apoio e colaboração: Ralf Reimann